“O que realmente me deixa feliz não é o fato de saber como as pessoas me viram, mas como viram minha cidade. O Brasil inteiro percebeu que dentro do Brasil existem vários Brasis. Manari é um deles”, Valéria Fagundes.
Por Marcus Tavares
Talvez, você se lembra dela. Valéria Fagundes era uma jovem estudante do interior de Pernambuco. Morava em Manari, que possuía o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país. A história dela foi uma de muitas retratadas pelo documentário Pro Dia Nascer Feliz, do diretor João Jardim. O filme estreou, aqui no Rio, em janeiro de 2007.
Na ocasião, tive a oportunidade de entrevistar o diretor. Segundo ele, trata-se de um documentário investigativo que mostra que não existem padrões de escolas, mas realidades complexas que envolvem alunos, professores e sistemas públicos e privados de educação. De certa forma, o conteúdo das cenas não é muito diferente das histórias que já foram publicizadas pela mídia. Mas, o fato é que elas estão todas reunidas numa costura narrativa simples, objetiva e sem ser piegas.
Passados três anos e em comemoração ao Dia da Criança no Rádio e na TV, uma data festiva coordenada há mais de 15 anos pelo Unicef, que tem o objetivo de dar vez e voz, na mídia, ao público infantil, resolvi conversar com Valéria. Afinal, o que aconteceu com aquela jovem estudante que lutava, no agreste de Pernambuco, contra todas as dificuldades para estudar? A partir do momento em que sua história ganhou as telas do país sua vida mudou? Qual foi o impacto do cinema na sua vida?
Acompanhe a entrevista:
revistapontocom - Como você foi ‘parar’ no filme Pro Dia Nascer Feliz?
Valéria Fagundes - O filme aborda as condições de ensino em todo o Brasil. Então o diretor [João Jardim] foi até a minha cidade para ver como funcionava a educação na cidade de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), do país, Manari [ dados de 2000]. Ao chegar à cidade, o João percebeu uma aglomeração de alunos em frente à casa do prefeito. Estávamos reivindicando transporte escolar. O diretor conversou com vários jovens, inclusive comigo. Depois ele nos acompanhou no caminho para escola e durante as aulas. E aí foi selecionando os personagens.
revistapontocom - Você tinha ideia do que era uma produção de cinema?
Valéria Fagundes - Para falar a verdade nunca tinha ido ao cinema nem imaginava como seria uma produção cinematográfica. O diretor não nos disse que aqueles depoimentos estariam mundo afora,embora a presença da equipe do filme tenha causado o maior reboliço na cidade.
revistapontocom - Como foi “da noite para o dia” se ver na tela do cinema e sob os holofotes da imprensa?
Valéria Fagundes - Foi um choque! A primeira vez que me vi na telona foi em Recife. Quando acabou a sessão, as pessoas me abraçavam. Certa vez, uma mulher me disse: se eu pudesse, botava essa menina no bolso e levava pra casa [risos]. Não entendia direito porque causava esse tipo de sentimento nas pessoas. Mas também não queria que me vissem como uma coitadinha. Apesar de tudo e da vida árdua, parte do que sei e do que sou aprendi com aquele povo e naquelas condições. Eu vivia ali no meio daquela realidade e sabia que não era nada fácil. Mas quando essa mesma realidade foi projetada é que a ficha caiu. Manari passou a ser capa de revista, notícias de jornal. De repente, me vi dando entrevista, aparecendo na TV.
revistapontocom - O fato de você ter aparecido no filme mudou a sua vida?
Valéria Fagundes - Costumo dizer que minha vida pode ser dividida antes e depois do filme. A partir da aparição no documentário, comecei a viajar e conhecer praticamente todos os estados do país. Conheci pessoas importantes e principalmente ampliei minha visão sobre o mundo. Na verdade, o filme abriu algumas portas. Então comecei a projetar meu futuro por meio dessas oportunidades.
revistapontocom - Mudou, inclusive, a sua maneira de pensar?
Valéria Fagundes - Com certeza. Minha maneira de pensar mudou de tal forma que não pude continuar em Manari, porque a maioria das pessoas já se acomodou com aquela realidade e não vislumbra possibilidade de mudança. Então cheguei ao um ponto que precisei sair e trilhar outro caminho. As pessoas pensam de forma muito limitada. O que elas sabem é o que é transmitido pela grande mídia. Elas absorvem e pronto. Nunca param pra questionar porque Manari ainda permanece nesse panorama ruim. Nem as crianças nem os jovens sabem quais são os seus direitos. Esse pensamento limitado vai sendo transmitido.
revistapontocom - As pessoas viram você de forma diferente depois do filme?
Valéria Fagundes - Acredito que sim. As pessoas perceberam que tudo aquilo que eu dizia começava a fazer sentido. Meus professores começaram a entender que existem várias outras valérias que estão à espera de uma oportunidade para fazer da sala de aula um ambiente mais agradável. O que realmente me deixa feliz não é o fato de saber como as pessoas me viram, mas como viram minha cidade. O Brasil inteiro percebeu que dentro do Brasil existem vários Brasis. Manari é um deles.
revistapontocom - Que importância o cinema teve para você?
Valéria Fagundes - O cinema projetou a história de minha cidade que até então era desconhecida. Projetou minha história e possibilitou o encontro do meu sonho com a realidade.
revistapontocom - Depois de três anos do filme, a Valéria….
Valéria Fagundes - Sou outra pessoa no mesmo retrato. Muitas coisas daquela Valéria do filme ainda mantenho, mas foi preciso abrir mão de outras para me manter firme e forte aqui na selva de concreto. Estou cursando o 6º período do curso de jornalismo, escrevendo um livro sobre minha vida e trabalhando com midiaeducação. Recentemente, inscrevi um roteiro num edital da Fundarpe - Fundação do Patrimônio Histórico e Cultural de Pernambuco. O roteiro foi selecionado e vou dirigir um curta sobre a história de Manari.
Fonte: http://www.revistapontocom.org.br/?p=2475
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