9 de nov. de 2010

A escola, o video game e o prazer

Por Marcelo Silva de Souza Ribeiro
Professor do Colegiado do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco, doutorando em educação (UQAC).

Este trabalho é fruto de algumas experiências que perpassam a própria história de vida, enquanto testemunha de uma geração que vive o video game em suas múltiplas facetas. Essas experiências têm a ver com a condição de ser pai de crianças que exploram o video game em seus processos de descobrimentos e também na condição de professor e orientador de um projeto de pesquisa que versa sobre a questão do uso do game em uma escola de educação infantil.

Sendo assim, e de modo mais específico, a metodologia proposta e desenvolvida que resultou na elaboração deste trabalho, teve como ponto de partida a questão da experiência em testemunhar, como pai, reações e comportamentos dos meus filhos face ao video game. Além disso, teve a ver com a minha experiência de professor e orientador, interessado e envolvido nas questões educacionais, sobretudo no que diz respeito ao modo como a escola vem se apropriando e lidando com as novas tecnologias da informação, principalmente o video game.

As reflexões que fazem corpo deste trabalho, portanto, se entrelaçam numa articulação entre o modo como as crianças e as escolas vêm lidando com os videos games, trazendo um destaque para relação entre a escola e o prazer. Essas reflexões, por sua vez, pretendem possibilitar questionamentos do tipo: estariam as escolas em sintonia com o modo como as crianças lidam com os vídeos games e constroem seus conhecimentos? De que modo as escolas tem apreendido e representado o vídeo game como instrumento mediador da formação das crianças? Assim, longe de intencionar respostas precisas para tais questões, o texto visa suscitar algumas reflexões sobre o assunto.

A experiência de ser pai: testemunha de uma geração

Quando o meu filho mais velho tinha seis anos eu sempre o presenteava com algum jogo educativo. Essa era uma das minhas contribuições para sua educação, principalmente na interação com as novas
tecnologias da informação. Assim que ele recebia o CD ROM, instalava-o em meu computador e, entusiasmadamente, ele ia jogar. Ao longo de certo tempo percebi que depois de alguns dias Matheus logo deixava o jogo de lado. Eu imaginava que talvez o jogo educativo não fosse tão bom e que procuraria algo mais próprio, mais autêntico em termos de sua origem e finalidade educativa.

Quando o meu segundo filho passou a ter uma idade que permitia maturidade para interagir com o computador, herdou os CD ROMs do irmão. O fenômeno, de modo semelhante, se repetiu. Assim como seu irmão, Thiago rapidamente “enjoava” dos jogos. Nesse ínterim, cheguei a pensar que o fato de sempre estar presenteando-os com jogos educativos diferentes, estivesse contribuído para algum tipo de condicionamento, onde a perda de interesse pelo jogo que acabara de ganhar fosse o reforço.

Foi então que percebi que os dois ficavam muito mais interessados e estabeleciam uma interação mais duradoura com os jogos convencionais. Deixei de comprar jogos educativos e passei a jogar com os meus filhos no seu play station II.

A experiência de ser professor e orientador: instigantes reflexões

A experiência com os meus filhos, embora marcante, não havia sido ainda motivo de reflexão a respeito da relação entre a escola, o uso do vídeo game e o prazer. Na verdade, o ponto choque foi quando dois alunos de psicologia me procuraram para que os orientassem em um projeto de iniciação à pesquisa.

Tratava-se, na época, de idéias difusas, mas que traziam na sua base discussões sobre a pertinência dos videos games (assim ou videogames?) convencionais para o processo de desenvolvimento e aprendizagem. Fiquei impressionado com a potencialidade de todas as idéias por eles apresentadas, mas terminamos optando por desenvolver um projeto de pesquisa e intervenção, abordando a questão do “video game nas escolas”, utilizando o video game como recurso mediador para o processo de aprendizagem no âmbito da educação infantil. A partir daí, tomei contato com várias idéias de pesquisadores que trabalham a questão das novas tecnologias, como Lévy (1995), Alves (1998) e Papert (2008).

Em retrospectiva, avalio que a experiência pessoal, o trabalho acadêmico, o contato com jovens estudantes criativos e as leituras contribuíram para lançar-me instigantes reflexões sobre a atual situação da escola, ou melhor, algo que passa pela indagação de como as escolas vem se relacionando com o video game e o que tem por base dessa relação, que é a questão do prazer.

Feixes de história da educação…

O educação contemporânea, sobretudo no que se refere a educação voltada para as crianças, surgiu com os primeiros moralistas na modernidade. Após a invenção da infância, com o descobrimento de que a criança seria um ser frágil, puro e vulnerável à corrupção, passou-se a ter a necessidade de criar espaços especializados onde a sua pureza pudesse ser preservada ao máximo e o seu caráter fortalecido ao ponto de poder resistir a um “mundo sujo” e de uma moral corrompida (ARIÈS, 1995).

Esses espaços foram os primórdios das escolas e foram também graças a esses lugares que os primeiros educadores puderam lançar seus olhares aos pequenos seres, aos seus processos de desenvolvimento e aprendizagem. A ironia dessa história é que a educação surge, inicialmente, enclausurando os escolares e é justamente a partir daí que se inicia toda uma série de movimentos que visam a emancipação e autonomia destes.

Seguindo a démarche de movimentos na educação que buscaram a emancipação e autonomia, Jean-Jacques Rousseau é um dos clássicos que vão defender veementemente a necessidade de uma pedagogia onde se respeite a natureza infantil, suas especificidades, suas necessidades e ritmos, em um clima de liberdade e respeito. Ele é, provavelmente, um marco na educação no que diz respeito a idéia de que nascemos capazes de aprender, mas sem nada saber e nada conhecendo. Aliás, outros enfatizam essa perspectiva como Paulo Freire (2008) e Carl Rogers (1990), ao definirem a curiosidade ou a atualização como aprendizagem, respectivamente, como a prima (o que é prima?)da construção do conhecimento. O próprio Piaget vai ter essa consideração ao falar da correspondência entre a vida (no sentido biológico) e a inteligência, referindo-se ao processo de auto-regulação organísmica e tendência majorante.

A psicanálise, como campo de compreensão do comportamento humano, também irá influenciar a educação (e suas práticas), sobretudo no que diz respeito a ideia de desejo enquanto elemento indispensável para que o conhecimento possa ocorrer. Sendo assim, muito educadores (LOPES, 1998; MACIEL, 2001) trouxeram a influência psicanalítica e passaram propor que os processos de ensino e aprendizagem fossem vistos a partir da idéia de desejo. Em outras palavras, seria imprescindível o desejo para que a criança pudesse verdadeiramente aprender.

A escola, tal como é conhecida hoje, nasce na modernidade com uma proposta moralizadora de enclausurar os escolares e é justamente a partir daí, de maneira contraditória, que muitos avanços são possíveis em termos pedagógicos. Entretanto, alguns desses “avanços” parecem não ter se efetivado na prática. A “descoberta”, por exemplo, por parte dos educadores de que o prazer é fundamental para o processo de ensino e aprendizagem tem eco em diversas teorias, mas tem ressonância no cotidiano das escolas?

Um pouco da história atual: a educação e o video game

Nessa perspectiva não é novidade falar da necessidade da escola facilitar processos onde o estudante possa ter prazer em estudar, prazer em estar na escola e prazer em aprender. Apesar das inúmeras discussões que permeiam a questão do prazer e da escola, como as relacionadas às teorias da motivação interna e externa, as teorias instrucionistas e o inconsciente, parece ser um assunto digno de atualização, sobretudo quando se insere no contexto escolar ou no mundo infantil elementos de grande poder de interação e sedução como o video game.

Moita (2007), vai dizer a respeito das possibilidades do game o seguinte: No início deste terceiro milênio, em que a tecnologia domina todos os espaços, desde os públicos aos privados (caixas eletrônicos, aparelhos eletrônicos domésticos sofisticados como: pequenos robôs, geladeiras, microondas máquinas de lavar), os games parecem surgir como natural teachers (Gentile; Anderson, 2005), a porta de entrada para crianças e jovens, principalmente das famílias menos favorecidas, para exercitarem suas habilidades e adentrarem nesse mundo eletrônico do cotidiano.

Os games, embora com algumas semelhanças, em sua elaboração, com os jogos tradicionais, permitem, para além da possibilidade de simulação, de movimento, de efeitos sonoros em sua utilização corriqueira, uma interação com uma nova linguagem, oriunda do surgimento e do desenvolvimento das tecnologias digitais, da transformação do computador em aparato de comunicação e da transformação do computador em aparato de comunicação e da convergência das mídias. Proporciona, assim, novas formas de sentir, pensar, agir e interagir (p.21).

Os recursos e possibilidades dos videos games vêm sendo utilizados em vários campos, que não somente o já conhecido campo do entretenimento. Eles estão sendo utilizados no tratamento de doenças, na atenuação de dores (em momentos onde o paciente tem que ser submetido a procedimentos dolorosos) e em tratamentos psicológicos, sobretudo na terapia para fobia.

Do ponto de vista teórico, o video game vem sendo estudado como recurso propiciador de desenvolvimento cognitivo e sócio-afetivo (estudos sobre o seconde life, entre outros). Além disso, o video game também vem sendo incorporado pela educação e chega até a escola através, sobretudo, dos mais variados jogos educativos.

A grande questão que se coloca no modo como o video game chega até a escola, ou melhor, como ele é apropriado pela educação e aterriza nas escolas é que ele chega, comumente, sem o prazer. Ele parece chegar carregado de elementos moralizadores com reprimendas, proibições e préconceitos.

De modo geral, alguns games educativos permitidos de serem trabalhados nas escolas são considerados pelas crianças como demasiadamente desinteressantes, pouco atrativos e enfadonhos. Ao contrário, é comum, por exemplo, constatar o modo como as crianças se relacionam com os convencionais games, em êxtase, frenesi e grande ansiedade para jogar, para ultrapassar os obstáculos, para vencer os inimigos e para ganhar as apostas. Em outras palavras, com aparente prazer.

Sendo assim, as crianças são capazes de ficarem horas e horas completamente entretidas e, nessa relação, são capazes de construir habilidades psicomotoras, cognitivas e aprender, velozmente, uma série de conteúdos que vão desde as regras dos jogos (muitas vezes complexos), passando pelas longas histórias que antecedem os jogos (que são uma espécie de prefácio onde se explica e contextualiza a história do jogo) até o aprendizado de outras línguas.

Por outro lado, via de regra, os jogos educativos (considerados “oficiais”) rapidamente saturam o interesse das crianças. Parece que são chatos e sem muito atrativo para os meninos e meninas que interagem com eles. É possível, inclusive, pensar que os jogos educativos seriam uma espécie de video games deserotizados. Daí, outra questão que se coloca é: por que parece haver na educação e no campo escolar uma tendência a retirar o prazer das ações e práticas vivenciadas pelos estudantes, apesar das teorias insistirem no poder do prazer para os próprios processos educativos?

A partir do que foi posto, podemos indagar como um universo de possibilidades de aprendizagem, que são essas tecnologias, como os vídeos games, tornaram-se desvalorizadas, sobretudo para a educação? Se podem influenciar no desenvolvimento de várias formas, por que, inserida no ambiente educacional, se tornou apenas uma mera extensão do sistema educacional, reproduzindo a falta de sentido entre o aprender e o prazer?

Para Alves (2003), a utilização de software reduzido a ele mesmo empobrece a prática pedagógica e limita o caráter exploratório tornando essas tecnologias chatas e por isso, desinteressantes. A autora alerta que é preciso rever toda a noção e abordagem de como as novas tecnologias têm sido manejadas no decorrer dos anos.

Até onde podemos constatar há, relativamente, poucos trabalhos, sobretudo no contexto nacional, sobre a utilização do video game como um instrumento que contribui para a aprendizagem e o desenvolvimento global da criança em um espaço educacional.

Podemos inferir, portanto, que pesquisas sobre a questão do video game, entendido como instrumento e em situação de mediação, pode contribuir para alargar compreensões do processo de aprendizagem e desenvolvimento, sobretudo em uma relação prazerosa. Por outro lado, uma série de questões são ainda postas. Vejamos a seguir.

Seriam as escolas e, mais especificamente, os espaços da sala aula impregnados muito mais de relações coercitivas, punitivas e castradoras do que possa imaginar a suposta ingênua visão do senso comum, como apontada por Jackson (2001)? Ou haveria abertura e ainda falta de oportunidade para as escolas se apropriarem de ações e atividades onde, efetivamente, o prazer pudesse estar presente de maneira natural nos processos educativos vividos pelos professores e estudantes? As escolas seriam espaços irremediáveis de não libertação e a serviço da domesticação? Ou dependeria muito do processo histórico e do poder de saber fazer uma pedagogia para libertação, como a apontada por Freire (2008)?

Longe de buscar responder de maneira precisa essas perguntas, até porque outras possibilidades e indagações certamente existem, o que nos interessa enquanto provocação é refletir sobre a absorção de práticas, e aqui mais especificamente, do video game com toda sua potencialidade criativa e de prazer no âmbito escolar e a serviço da escola, mas sem perder de vista o interesse, a alegria, o entusiasmo e o prazer que as crianças sentem ao interagir com o video game.

A guisa de uma meia conclusão: a experiência do projeto video game nas escolas

O projeto de iniciação à pesquisa sobre a utilização do video game na escola, como recurso para potencializar a aprendizagem e o desenvolvimento, tem sido uma experiência bastante rica em termos de possibilidades de ação e reflexão. A experiência da pesquisa vem sendo desenvolvida em uma escola de educação infantil da rede municipal da cidade de Petrolina – PE, envolvendo crianças na faixa etária de 5 (cinco) a 7 (sete) anos.

O critério de seleção das crianças passa pela indicação dos próprios professores tendo por base algumas dificuldades de aprendizagem. O trabalho já vem sendo realizado há 2 (dois) anos e, atualmente, trabalha-se com um total de 12 (doze) crianças. Estas são divididas em grupos de 3 (três) ou 4 (quatro) crianças e as sessões acontecem uma vez por semana.

O trabalho consiste em disponibilizar um video game (modelo PS2), aparelho de televisão e os próprios jogos. Estes são selecionados previamente, tomando como critério a adequação a certas habilidades e dificuldades observadas nos grupos das crianças. Estas, então, são convidadas a jogar e nesse processo os orientandos interagem e fazem intervenções em relação ao próprio ato de jogar, mas buscando sempre relacionar com os níveis de desenvolvimento e aprendizagem das crianças.

Um exemplo do que acabemos de abordar é quando a criança que chega com dificuldades de lateralidade e que movimenta o controle de modo espelhado é mediada de modo a assimilar outro tipo de relação entre os movimentos na tela e os que ela opera no controle. Assim, trabalham-se questões relacionadas aos aspectos cognitivos, mas também sociais e afetivos. A questão do limite é outro exemplo. Quando uma criança “perde” a partida tem que passar o controle para o outro colega e nem sempre isso é evidente. Há regras estabelecidas, há questionamento a respeito dos personagens escolhidos e das tarefas a serem executadas durante as jogadas, há descobertas feitas entre as próprias crianças, etc.

Para mensurar o desenvolvimento é feita uma avaliação com as crianças, entrevistas com os pais e professores. Faz-se uso também de uma tabela de acompanhamento do desenvolvimento da criança, de modo que tudo isso permite apresentar um quadro evolutivo. Ainda existem muitos pontos a serem explorados e experimentados nesse tipo de pesquisa, mas já é possível afirmar que há lacunas na utilização do video game nas escolas, sobretudo em relação aos games comerciais. De modo semelhante, podemos também afirmar que várias dificuldades foram e estão sendo encontradas na utilização desse recurso como facilitador do desenvolvimento dos alunos, sobretudo das crianças em educação infantil.

Assim, temos observado uma série de pré-conceitos que rondam a questão da incorporação do video game nas escolas. O que parece ser permitido e que não provoca “sustos” aos educadores é o jogo educativo, aquele que chamamos de “deserotizados”. Entretanto, quando é mencionado o jogo convencional, o video game, percebemos certo espanto na face das professoras. Não incomum, somos questionados se utilizamos “aqueles jogos violentos”. E para escândalo, balançamos a cabeça acenando positivamente (com um leve e discreto sorriso sarcástico).

O que queremos frisar é a pergunta que insiste em permanecer de maneira indignada: educação não rimaria com prazer? A partir das nossas próprias experiências e o que temos encontrado nos estudos consultados é que sim. Tudo aquilo que desperta a curiosidade e atenção das crianças pode ser fonte e recurso positivo para a escola aproveitar como meio educativo. É lógico que não estamos falando de uma tendência contemporânea de buscar sempre aquilo que é mais fácil, na beira de um modismo que é avesso ao esforço. Na verdade, o prazer, a curiosidade, nos leva a transpor montanhas, dificuldades e porque não dizer, as limitações do próprio modelo de escola que existe hoje.

Finalmente, nessas andanças que estão sendo suscitadas pela experiência e reflexão que levam em consideração a tríade escola, video game e prazer, expomos o questionamento de por que não incorporar os vídeo games como recursos, mediadores e facilitadores para os processos de desenvolvimento e aprendizagem no âmbito das escolas?

A questão posta no parágrafo anterior parece suscitar algumas reflexões, objetivo deste trabalho, que levam, por sua vez, a pensar o papel da escola e como esta vem se apropriando das novas tecnologias. Entretanto, também nos parece que a escola não só tem tido modos particulares de se apropriar das novas tecnologias e, mais especificamente, dos games, mas também tende a incorporar certo modo de lidar com o prazer, com o lúdico, em seus espaços.

Com certa obviedade, este trabalho trás limitações no que diz respeito a possibilidade de explorar temas tão complexos como a questão do prazer nos ambientes escolares, mas tende a apontar e provocar compreensões e, porque não, incômodos reflexivos a respeito da relação entre a escola, o video game e o prazer.

Esperamos, portanto, ter contribuído, mesmo que de maneira modesta, para provocar algumas reflexões acerca da pertinência do prazer na escola, sobretudo no que diz respeito à utilização do vídeo game convencional como instrumento potente para desencadear o prazer de aprender. Talvez o game, com toda sua “magia” de modernidade, do novo, possa resgatar algumas reflexões daquilo que a escola tenha perdido em seu passado, ou seja, a conexão entre o ensino e o prazer.

É certo que, entendido como instrumento em si, o video game nada poderá garantir. Há que se valer de processos competentes de mediação, sabendo dispor o vídeo game a serviço dos processos educativos e escolares, mas sem perder de vista a necessidade de não deserotizá-lo.

Fonte: http://migre.me/25VYI

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