«O mal-entendido que persegue a comunicação pedagógica não permanece tolerável senão enquanto a escola é capaz de eliminar aqueles que não satisfazem as suas exigências implícitas, e consegue obter dos outros a cumplicidade necessária ao seu funcionamento». P. Bourdieu e J.C. Passeron
Sempre me interroguei sobre o significado da relação pedagógica. Que relação é esta em que os parceiros não se escolhendo se encontram implicados, onde o vínculo existente não é da ordem familiar mas pressupõe uma finalidade educativa, onde a legitimação de conteúdos culturais tem um peso significativo mas em que os valores da afetividade são preponderantes? Como é possível olhar esta relação na sua intrínseca e constitutiva complexidade?
Tentando evitar a tentação de decompor esta relação nos seus elementos e assim, isolados, os olhar, encontrei no horizonte comunicacional uma possibilidade de reflexão, aceitando, finalmente, a relação pedagógica como relação de comunicação. Digo bem, finalmente. Pensar o óbvio é sempre uma tarefa impertinente.
Quando falamos de comunicação temos em mente um esquema reticular do processo de comunicação, e não um esquema linear, meramente processual.
Como nos diz Yves Winkin (1981) «este modelo da comunicação não é baseado sobre a imagem do telegrafo ou do pingue-pongue - um emissor envia uma mensagem ao receptor, que se torna por sua vez um emissor, etc. -, mas sobre a metáfora da orquestra».
A comunicação é aqui concebida como um sistema de múltiplos canais nos quais o ator social participa a todo o instante, quer queira ou não: pelos seus gestos, o seu olhar, o seu silencio... Na sua qualidade de membro de uma certa cultura, ele faz parte da comunicação como o músico da orquestra. «Mas nesta vasta orquestra cultural, não há nem chefe nem partitura. Cada um representa de acordo com o outro».
A analogia da orquestra tem por objectivo fazer compreender como é que se pode afirmar que cada individuo participa na comunicação ainda que ele não seja a origem ou o resultado. Este modelo orquestral faz-nos ver na comunicação o fenômeno social que o primeiro sentido da palavra tão bem indicava: a participação, a comunhão. Na justa medida em que a comunicação, mais do que intercâmbios de informação, significa precisamente participação, ela decorre de uma sincronia interacional.
Desta forma, o sujeito de enunciação adquire um estatuto ambivalente, deixando de ser considerado como simples emissor. Ele é agora encarado como «nó politópico», «em situação de interferência», «sede de uma pluralidade de trocas e de intercepções».
Tomemos agora o sentido mais amplo do conceito de relação: conexão entre duas ou mais coisas - os termos da relação -, sejam elas objetos, pessoas, factos ou acontecimentos. A relação estabelece, pois, um vínculo de união entre os elementos relacionados e possibilita a unidade dentro da multiplicidade. Com efeito, mesmo para que um homem possa sofrer o isolamento é necessário que a sua relação com outrem, tal como ela se exprime na e pela linguagem, o constitua na sua realidade de pessoa.
O contributo de F. Jacques (1982), um autor de relevo na área da antropologia relacional, adquire uma grande importância ao consagrar o reconhecimento da possibilidade de se afirmar uma relação interlocutiva tão real quanto os seus termos. O seu papel é o de colocar em ordem e de doar sentido à ordem dos indivíduos que, por si mesmos, lhe são estranhos. A relação introduz assim no universo alguma coisa de irredutível aos indivíduos, que não pode ser absorvido por eles. Poder-se-á afirmar que os indivíduos pré-existem à relação que se instaura entre eles, mas a construção da identidade pessoal passa necessariamente por essa relação. Na realidade, é na e pela relação que eles são. Para existir como eu pessoal, é necessário que encontre um outro. Para cada um, a pessoa de outrem torna-se uma instância da sua configuração pessoal. «Neste sentido, para fazer um eu, são precisos dois».
Partindo do pressuposto de que a mensagem tem um sentido e que, por consequência, transmitindo a mensagem, se transmite o sentido, alicerçou-se todo um modelo educativo assente no entendimento do processo de comunicação como um processo de transmissão; conseqüentemente, a comunicação educativa foi maioritariamente encarada sob o ângulo da informação, e o que tinha a ver com o sentido e com o sujeito muitas vezes foi posto entre parênteses - quer por se considerar que o sentido resultava de uma operação mecânica de codificação, ou porque se aceitava o princípio de que o sentido é uma propriedade intrínseca dos signos.
No entanto, parece-nos ser pertinente reafirmar com René La Borderie (1994)) que ao educando o que lhe chega do educador não são conhecimentos, mas antes signos, discursos, textos, que ele tem em primeiro lugar que compreender, assimilar e transformar em conhecimentos, ou ainda «é demasiado fácil afirmar que as palavras, as imagens, os textos têm um sentido, e que basta atribuir-lho; porque se elas têm um sentido para aquele que sabe, ainda não o têm para aquele que aprende; e esse é o problema real, fundamental e primeiro da educação(...)».
O conceito de sentido é, pois, fundamental para a comunicação e inequivocamente necessário numa relação educacional. Pode-se mesmo afirmar que a principal preocupação da comunicação é o sentido; usamos a linguagem para exprimir e obter sentidos, ou melhor, o sentido é inerente à própria definição de linguagem. Evidentemente, o sentido relaciona-se com os códigos escolhidos para a comunicação, com a linguagem que usamos para codificar as nossas intenções em mensagens e para responder a mensagens descodificadas.
Podemos dizer, de uma forma abreviada, que as teorias do sentido oscilam, segundo as Épocas, as culturas e os diferentes autores, entre três abordagens tipo, as quais se encontram intimamente relacionadas com a acepção que se atribui à compreensão (e ao ato de compreender) e, por conseqüência, particularmente condicionantes da organização de qualquer ato educativo:
a) Uma abordagem endógena: o sentido existe em si (em nós), vem-nos do interior, deve-se redescobri-lo; os signos reenviam para uma realidade interior pré-existente. O ato de comunicação é então um ato de desvelamento; os signos reenviam para uma realidade interior que não pode atingir-se senão por um exercício de introspecção. Lembremo-nos da maiêutica socrática, mas também de todas as metáforas sobejamente utilizadas em educação como, por exemplo, desabrochar.
b) Uma abordagem exógena: o sentido não existe em nós, vem-nos do exterior por um ato de revelação ou de explicação; os signos têm um sentido, mas este esconde-se neles, pelo que tem de nos ser revelado. Neste caso, nomeadamente em educação, considera-se que o emissor, o educador, transmitindo um discurso, transmite também o sentido, uma vez que cada um dos signos que compõem estes textos tem um sentido. Mas este sentido nem sempre é evidente; porque o discurso é mais ou menos difícil o educador explica-o, explica-o por outro discurso ( tendo este um sentido próprio).
c) Uma abordagem construtivista: o sentido resulta de uma construção dos sujeitos num ato específico de interação com os homens e com o envolvimento; está estreitamente associado à experiência; é o ato semiótico, ou ainda semiogenético: de gênese do sentido. Compreender é dar sentido.
Assume-se, assim, que as significações estão nas pessoas; os sentidos são construídos e aprendidos. Nas palavras de David Berlo (1985) «Nós aprendemos significados, acrescentamo-lhes algo nosso, distorcemo-los, esquecemo-los, modificamo-los. Não podemos encontrá-los. Eles estão em nós, não nas mensagens».
A comunicação não consiste, pois, na transmissão de significados. Os sentidos não são transmissíveis, não são transferíveis. Somente as mensagens são transmissíveis, e os sentidos não estão na mensagem, estão nos que usam as mensagens.
Ou como nos diz David Berlo de uma forma clara: «Tem-se dito com freqüência que as palavras não significam o mesmo para todas as pessoas. Não seria mais exato dizer que as palavras não significam absolutamente? Apenas as pessoas significam, e as pessoas não querem dizer o mesmo com as palavras».
O sentido não é coisa que se encontre nos objetos ou coisas. É encontrado nas pessoas. Os sentidos que damos às coisas consistem nos modos como respondemos a tais questões internamente, e nas predisposições com que a elas respondemos externamente; os sentidos nunca são fixos. As experiências mudam, os sentidos mudam.
O próprio sentido é fruto de um processo. Entender a natureza do sentido e como os sentidos são produzidos e aprendidos, é estar preparado em parte para uma comunicação efetiva. Não podemos transferir ou transmitir sentidos. O mais que podemos fazer é codificar mensagens destinadas a evocar os sentidos que desejamos.
É, pois, neste esteio que a configuração do professor como "condutor" de sentido(s) se sustenta.
Podemos mesmo dizer que o sentido em educação se desdobra em dois vetores fundamentais: por um lado no âmbito da significação, como temos vindo a explicitar, aberto a um campo de significações plurais, enquanto mediador entre saber(s) e conhecimento e por outro como aquele que aponta possibilidades de sentido na acepção de direção, objetivos abertos à finalidade da vida. Por todo um conjunto de pressupostos ambíguos, encontramo-nos hoje numa situação em que os educadores profissionais, ou melhor, aqueles que fazem da educação profissão, têm pudor em se afirmar como professores. Mas temos de insistir, a abertura à diversidade, à construção plural (eventualmente à desconstrução e reconstrução) não pode significar inexistência, ausência , vazio.
Todos nós, neste mundo cada vez mais complexo, precisamos de condutores entre os universos de significações cada vez mais plurais e paradoxais. Ora, uma das nossas funções enquanto professores (e de todos os educadores em geral) é sermos precisamente condutores de sentido. Sem temor de assumirmos a nossa frágil condição de humanos e, até, as nossas próprias contradições.
Maria João Couto
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Referencias
BERLO, David, O Processo da Comunicação. Introdução à Teoria e à Prática,trad., Edições Martins Fontes, S. Paulo, 1985.
BORDERIE, René La, «Poderá falar-se de Comunicação Educativa?»,
trad., Revista Colóquio Educação e Sociedade, nº 5 Março 1994, 31-85.
JACQUES, Francis, Différence et subjectivité,
Éditions Aubier Montaigne, Paris, 1982.
YVES, Winkin (org.), «Communication», in La Nouvelle Communication,
Éditions du Seuil, 1982
Fonte: http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=590
Um comentário:
Seu texto é muito bom e partilho de algumas idéias e angústias. Penso que educadores comprometidos farão muita coisa mudar.
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