Isaac faz lição na Escola Estadual Blanca Zwicker Simões, de São Paulo. Egresso de um colégio particular, ele teve de fazer aulas de reforço para acompanhar o ritmo da pública
“Você anda tão pão-duro. Como você tem coragem?”
Responder a perguntas assim virou rotina na vida da catarinense Mirna Schwendler, de 38 anos, desde que matriculou os dois filhos, de 10 e 8 anos, numa escola pública de Brasília. Quando alguém pergunta onde seus filhos estudam, Mirna já sabe que a reação será essa. Ou longos silêncios de espanto. Ela, que poderia pagar para os dois estudarem numa escola particular, fala sobre o assunto rindo: “Tem muito preconceito. É impressionante”.
Os filhos de Mirna estão matriculados numa escola pública regular. Não tiveram de enfrentar provas concorridas, típicas dos colégios militares e escolas federais, conhecidos como a nata do ensino público no país. Nada na Escola Classe 314 Sul, onde estudam, lembra um centro de excelência. O prédio é bem cuidado. É limpo, mas requer reparos. No canto do pequeno pátio interno, carteiras empilhadas aguardam conserto. As salas são quentes e contam apenas com velhos ventiladores de teto. A organizada biblioteca tem poucos livros. As revistas são do ano passado. Conquistas como quadros brancos, persianas e máquina de xerox são fruto de doações e receita da festa junina. A escola só tem três computadores.
Você colocaria uma criança para estudar lá? Não? E se soubesse que dessa escola saíram as melhores notas das redes pública e privada do Distrito Federal? A Escola Classe 314 Sul, que vai da 1ª à 4ª série, ficou com média 6,7 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) em 2007. A média da rede particular foi 6,1. O Ideb, índice do Ministério da Educação, combina o desempenho dos alunos nos exames federais de Português e Matemática (Prova Brasil e Saeb) com o porcentual de aprovação das escolas. Isso significa que a pequena escola pública brasiliense, com carteiras empilhadas e ventiladores velhos, oferece um ensino melhor que muitos colégios particulares com piscina e piso de ladrilho hidráulico.
Como ela, há no Brasil 308 escolas públicas de 1ª a 4ª série com resultado igual ou superior ao da rede particular. Elas estão em cidades grandes como Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza e Curitiba. Muitas ainda não ganharam notoriedade e não exigem provas de seleção para a entrada de novos alunos. A qualidade desses colégios, onde estudam 92 mil crianças, explica a decisão de pais e mães como Mirna. Ao trocar o ensino privado pelo público, eles quebraram um tabu. Pagar pela educação não é, necessariamente, um bom investimento. E, apesar da constante necessidade de dar explicações, esses pais não estão arrependidos.
As 308 escolas públicas com médias acima das da rede particular são uma exceção num universo de 38 mil instituições. É importante lembrar que também existem milhares de escolas privadas acima dessa média. Nas últimas décadas, o ensino privado se firmou como uma opção no Brasil justamente porque sua qualidade era superior à das escolas municipais ou estaduais. Na média nacional, as escolas privadas estão com 6 no Ideb, a média dos países desenvolvidos. As públicas têm nota 4,2. Até por uma questão numérica. A rede particular de 1ª a 4ª série possui 2 milhões de alunos selecionados por poder aquisitivo. Já na rede pública há 16 milhões de alunos.
A escola pública costuma abrigar alunos menos favorecidos, moradores de bairros onde o serviço público peca pela falta de qualidade em áreas estratégicas, como saúde, segurança, transporte e assistência social. A renda baixa dos pais, a violência e a falta de acesso a locais onde há emprego e equipamentos culturais são alguns dos fatores que prejudicam o desempenho das crianças. Mas as 308 escolas acima da média revelam que, apesar de todas essas dificuldades, dá para conseguir bons resultados. Seus exemplos ajudam a mostrar um caminho para recuperar a educação no país.
Roberta com seus filhos Henrique e Helena. Ela é a diretora da escola estadual de Brasília onde os dois estudam
Qual é o segredo dessas boas escolas públicas? Parte do sucesso pode ser explicada pela qualidade da gestão. Na Escola Classe 304 Norte, a segunda mais bem colocada em Brasília, a gestão é compartilhada com um conselho escolar, com 30 representantes, entre funcionários, professores e pais. “Muitos acham que dividir a gestão é perder poder. Discordo”, diz a diretora, Roberta Farage. “Isso exige que os pais participem do processo educacional dos filhos e exerçam cidadania. Dá trabalho, mas vale a pena”. Os pais que são membros do conselho vão às reuniões e cobram do governo e da Justiça seus direitos. Costumam recorrer todo ano para fazer valer uma lei do Distrito Federal que estabelece um máximo de alunos por turma, para evitar classes superlotadas. Esses pais já foram chamados de “gangue da 304”. A Associação de Pais e Mestres garantiu a compra de seis computadores para a escola, reforma da fachada e, graças a doações generosas, material escolar e “patrocínio” de passeios aos estudantes mais carentes.
Dá para sentir os efeitos desse tipo de gestão no cotidiano dos alunos. Numa segunda-feira à tarde, mais de cem crianças do colégio estão sentadas no pátio. A assembléia de estudantes atinge seu ápice, com aplausos e gritos, quando um aluno sugere a troca do chão de cimento da quadra para grama sintética.
– Grama sintética é uma boa idéia? – pergunta a diretora.
– Ééééééé... – o coro responde.
– É uma idéia barata?
– Nãoooooooooo...
Depois que as crianças retornam para as salas de aula, Roberta diz: “Estamos decidindo o que fazer com a verba da reforma e ouvimos também os alunos sobre isso”. Quanto eles têm para usar? “R$ 2 mil”, responde. “Pois é, tanta mobilização para decidir como gastar R$ 2 mil que nem chegaram.” E dá risada.
A maior prova de confiança de Roberta no próprio trabalho são seus filhos, Henrique e Helena. Eles estudam lá. A escola também ganhou a confiança do biólogo Eric Fischer, do administrador Roberto Ghiggi e do designer Masanori Ohashy. Esses pais de alunos têm algo mais em comum: eles poderiam pagar por ensino privado, mas fazem questão de participar na gestão da escola pública.
“A escola pública de qualidade só vai existir quando a classe média apostar nela”, diz Masanori, pai de Clara e Alice, alunas da 4ª e da 2ª série da Escola Classe 304 Norte. “Não gosto dessa história de preparar minha filha para o vestibular. Adestrando, você não dá autonomia. Quero que minhas filhas saibam resolver seus conflitos”. O administrador Ghiggi, outro pai de aluno, valoriza o convívio eclético do ambiente escolar público. “Eu queria que meus filhos tivessem uma formação ampla, de convívio com pessoas iguais e diferentes deles, como eu tive”, diz. “Vejo aqui uma inclusão social inversa. Minha mulher diz que sou sonhador, mas esse é um risco calculado, porque a escola é boa”.
O Distrito Federal costuma ser citado como uma exceção nacional no quesito ensino público. É lá que o professor ganha os melhores salários do país. Eles já entram recebendo R$ 3.200. “Um aluno aqui custa R$ 600 por mês para o governo, o preço de uma escola particular. Então, precisamos oferecer um ensino de mesma qualidade”, diz o governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (DEM). Isso não significa que o ensino público na capital federal seja uniforme, pois o investimento financeiro não se traduz automaticamente em qualidade. O governador, que vive há mais de 30 anos em Brasília, tem oito filhos. Nunca matriculou nenhum em escola pública.Embora o orçamento por aluno seja o mesmo, há escolas em Brasília com notas bem abaixo das melhores. Por que isso acontece? “Escola com bom diretor é boa. E a boa escola captura os pais para a educação dos filhos”, diz o secretário de Educação do Distrito Federal, José Valente.
Onde as públicas são melhores |
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Quanto mais alta a nota média da rede particular no Ideb, maior a quantidade de escolas públicas que a superam |
Boa direção e pais atuantes são a fórmula que tem compensado a falta de estrutura típica dos estabelecimentos mantidos por Estados ou municípios. “Temos aqui quatro ou cinco pais analfabetos tão presentes quanto os pais com nível superior. Todos buscam a mudança pela educação”, diz Bernadete Caparica, de 47 anos, vice-diretora da escola pública com o melhor resultado no Ideb do Distrito Federal, onde estudam os filhos de Mirna. Segundo Bernadete, 80% dos 356 alunos moram em bairros carentes e distantes do centro de Brasília. Há, ainda, 19 com necessidades especiais. A escola tem dado ênfase à leitura. O projeto Prazer em Ler reserva uma hora por semana para que as crianças leiam, na escola, sem cobranças posteriores. Depois do recreio, o sinal toca várias vezes, até a algazarra dar lugar a um alegre murmurinho de 179 crianças sentadas. Quando a confusão finalmente cessa, elas escolhem o que vão ler, entre livros, gibis e revistas. Parecem se divertir.
“Essa escola foi uma revolução na minha vida. Antes dela, joguei dinheiro fora”, diz Helenice Halbe, funcionária do Superior Tribunal de Justiça. Ela é formada em Direito e Economia e mãe de Bernardo, aluno da 4ª série. Recorreu à escola pública em busca de mais disciplina para o caçula de três filhos. “Percebia um certo receio das professoras da escola privada em ser duras com ele e me desagradar”, diz. Pela escola da filha mais velha, Helenice ainda paga R$ 960 por mês.
Um bom ensino público não é privilégio da capital federal. A mãe Gláucia Saraiva Eugênio, que mora em Anália Franco, bairro de classe média de São Paulo, descobriu que a escola pública podia ser mais forte que a particular. Seu filho Isaac, de 8 anos, estuda no período da tarde na escola Blanca Zwicker Simões, da rede estadual. Gláucia tirou seu filho de uma tradicional escola particular paulistana (cujo nome prefere não publicar) quando percebeu que, na 1ª série, ele continuava fazendo os mesmos exercícios de unir os pontos que fazia no pré. Depois de, com outras mães, reclamar com a direção e não ter resposta, partiu em busca de outra escola. Visitou as melhores particulares da região, mas nenhuma aceitou o menino que ainda não sabia o alfabeto. Sugeriram que terminasse a 1ª série na outra escola e repetisse o ano. “Eu não ia investir mais tempo da vida de meu filho e nosso dinheiro naquela escola”, afirma Gláucia. No colégio estadual, cujos resultados no Ideb de 2007 e 2005 estiveram acima dos da rede particular, ela encontrou uma resposta. “Conversei com os professores e olhei os cadernos. O ensino dado ali era muito parecido com o das particulares que visitei”. Em agosto de 2007, Isaac estava transferido. Para ele pegar o ritmo, sua professora deu aulas de recuperação e lição extra para casa. De manhã, Isaac freqüenta aulas de Português e Matemática no Kumon (curso que usa um método de ensino desenvolvido no Japão), faz aulas de piano e pratica natação. Aos sábados, a família dirige até um município vizinho para as aulas de equitação do garoto. “As pessoas acham que estamos economizando na educação dele”, afirma Gláucia, única entre as amigas cujo filho estuda na rede pública. “Não conseguem entender que, em nosso caso, o melhor investimento foi colocar o Isaac numa escola pública”.
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI7709-15228-1,00-QUANDO+A+PUBLICA+GANHA+DA+PARTICULAR.html
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