7 de abr. de 2010

TEXTOS DISCUTÍVEIS - Tecnologia em Educação


 Pedro Demo (2010)

Neste texto tenho a intenção de trabalhar a relação entre educação e tecnologia (agora “novas tecnologias” ou, “novas novas tecnologias”) (Levinson, 2009), com o intuito de aclarar modos críticos e autocríticos de produção e uso, afastando-nos da panaceia, bem como da repulsa. Em certa medida, todo processo educativo é “uma tecnologia”, não necessariamente no sentido de equipamento material/virtual[1], mas de “tecnologia do espírito”: maneira de intervir em e mudar modos de ser das pessoas (A tecnologia vista como narrativa, 2008). Há críticos ácidos (entre nós, Setzer) (2008), como Sfez (1994), que cita entre os “basbaques” Negroponte e Lévy (A tecnologia vista como narrativa, 2008)[2]. Pode-se fazer contraponto entre “tecnofilia” e “tecnofobia” (Demo, 2009), procurando alocar-se em algum lugar intermédio, como faremos aqui. Predomina ainda em educação, se não certa repulsa, pelo menos distanciamento comprometedor (Demo, 2009a), o que pode tornar a escola referência obsoleta crescentemente. Sendo nosso século insistentemente contaminado por tecnologias digitais, torna-se crucial saber lidar com elas, também para não ser tragado por elas. 

I.    DEFESA DAS TECNOLOGIAS

Tomo como exemplo de defesa das tecnologias um texto de Jenkins (2010), numa tentativa bem informada de mostrar que os questionamentos podem não ter fundamento científico suficiente, sem falar em resistências piedosas. Discute “oito mitos” em torno dos malefícios dos videogames:
a)  A disponibilidade de videogames levou a uma epidemia de violência juvenil” – as estatísticas criminais nos Estados Unidos apontam, ao contrário, para uma baixa em 30 anos; dados indicam que pessoas criminosas veem menos videogames que outras, embora seja verdadeiro que jovens criminosos (tiroteios em escolas) eram jogadores de tais videogames (Tapscott, 2009); há que se levar em conta que jovens são mais facilmente jogadores (90% para garotos e 40% para garotas); a grande maioria dos jogadores não cometem atos antissociais; em geral, se reconhece que os crimes em escolas se ligam mais à estabilidade mental e à qualidade familiar de vida, não à exposição na mídia (Sternheimer, 2003); ademais, o pânico cultivado em torno dos videogames é duplamente prejudicial: intensifica suspeitas sobre jovens jogadores que já se sentem afastados da sociedade, e gasta energia que deveria voltar-se para causas mais reais da violência juvenil;
b)  Evidência científica vincula jogo violento com agressão juvenil” – procura-se estabelecer como “evidência científica” procedimentos e resultados ainda duvidosos (por volta de 300 pesquisas), por várias razões metodológicas: imagens de violência aparecem sem contexto, apresentam-se questões aos entrevistados que não fazem parte de seu cotidiano, o ambiente de laboratório é bem diferente do real; pode-se encontrar alguma “correlação”, não causalidade direta, o que permitiria no máximo sugerir que videogames poderiam ser um dos fatores de risco; nenhuma pesquisa consegue estabelecer que videogames seriam fator decisivo;
c)   Crianças são o mercado primário para videogames” – de fato, a maioria das crianças americanas joga videogame, mas o mercado de consumo está subindo de idade, à medida também que as crianças crescem: 62% do mercado de console e 66% do mercado de PC estão acima dos 18 anos; embora seja correto alegar que poderíamos ter videogames menos consumistas e persuasivos em termos de advertising e marketing (Fogg, 2003. Bogost, 2007), cabe lembrar a responsabilidade dos pais; segundo a Federal Trade Commission, 83% das compras de games para consumidores menores são feitas por pais ou por pais e crianças juntos;
d)  Quase nenhuma menina joga videogames” – historicamente é fato, mas a participação feminina está crescendo firmemente, tendo como uma das razões serem tais jogos porta de entrada para outras habilidades virtuais importantes na vida e no mercado; ainda existem estereótipos sexistas, por conta do machismo dominante, que são contraditados pela tendência das meninas de construir seus caracteres (avatares) de maneira cada vez mais poderosa e independente; Jones (2003) sugere a importância de tais jogos para alimentar a fantasia, e mesmo o tipo de violência “faz-de-conta” (como no filme de faroeste: todos se matam, mas ninguém morre!); em geral as crianças distinguem claramente entre a violência real da vida real e a fantasia da violência nos jogos;
e)  Porque jogos são usados para treinar soldados a matar, possuem o mesmo impacto sobre crianças que os jogam” – esta ilação é excessivamente linear (brutalizar e tonar agressivas as pessoas); para Jenkins (2010), funcionaria somente se: i) isolarmos o treinamento de seu contexto específico cultural e educacional; ii) assumirmos que os aprendizes apenas engolem o que lhes é imposto; iii) assumirmos que os treinados aplicam o que aprenderam num ambiente de simulacro diretamente ao mundo real; videogames são certamente ambíguos, como qualquer jogo (pode-se usar futebol para aprimorar a violência dos atletas), mas podem também ser usados para fins nobres de aprendizagem, sendo este hoje um tema em franco progresso (Gee, 2003; 2007; Shaffer et alii, 2005);
f)    Videogames não são forma significativa de expressão” – em meio a controvérsias judiciais que perduram, o que se constata é apenas a ambiguidade natural dos jogos: podem ser banais e expressivos, podem ser fúteis e persuasivos; seria quixotesco imaginar que as crianças antes de 18 anos fiquem alijadas de tais jogos, porque este controle é fictício e antieducativo; apenas aguçaria ainda mais o interesse duvidoso; ademais, não cabe supor que jogadores não tenham opinião, capacidade de crítica e resistência, bom senso etc.;
g)  Jogo de videogame é socialmente isolador” – grande parte, porém, tem marca social: 60% de jogadores frequentes jogam entre si, com amigos; mesmo jogos previstos para jogadores separados muitas vezes admitem participação (colega ao lado auxiliando nas estratégias, por exemplo); é importante distinguir os cenários: dois jogadores podem enfrentar-se duramente em batalha com morte na tela e ser amigos inseparáveis na vida real; não se pode esquecer ainda que a internet constitui redes sociais, ainda que jamais substituam contato físico;
h)  Jogo de videogame torna o jogador insensível” – ao contrário, há estudos que mostram primatas sabendo distinguir perfeitamente entre situação de luta real e simulada (de brincadeira); no “círculo mágico” do jogo tudo parece possível, na vida real jamais e isto os jogadores, em geral, sabem distinguir; afirmar que jogo violento pode causar falta de sensibilidade para com vítimas reais pode encobrir que o jogador já tinha outros problemas mentais; jogo violento pode levar a jogo mais violento, mas é preciso diferenciar os cenários virtuais dos reais.
O questionamento de Jenkins (2010) desses oito mitos é interessante, mas mostra um lado da moeda. Não imagino que seja possível, um dia, reconciliar os dois lados, porque há, ao fundo, também questões hermenêuticas de interpretação multi e intercultural. Por exemplo, muitos espanhóis diriam que a corrida de touros (na qual os touros são sacrificados num ritual de jogo), sendo parte da cultura, não produz nem incentiva violência. Outros – talvez já a grande maioria – diriam que se trata de espetáculo execrável. As tecnologias são ambíguas, naturalmente, como assevera Levinson, discutindo seu “lado sombrio” (2009): podem ser usadas para fins considerados positivos ou negativos. Mesmo as mais polêmicas, como a tecnologia atômica, manchada pelo uso bélico trágico, admite esta visão: pode ser usada para fins nobres também. Outra coisa é considerar o pano de fundo das tecnologias em determinada cultura (a eurocêntrica, neste caso). Quando tecnologia leva o signo da dominação, prepotência, colonização culturamente estabelecido, aparece, para além da mera ambiguidade, a questão ética, pois tecnologia incorpora um projeto de subordinação de outras culturas. Olhando ainda o mercado de “patentes” e de “copyright” que protege a propriedade privada de tecnologias, este cuidado torna-se tanto mais patente.
Jenkins refere-se apenas a videogames, mas há tantos outros cenários de violência na internet e computador, que vão desde agressões virtuais que por vezes acabam se tornando físicas, aliciamentos para fins truculentos, assaltos virtuais de hacker em contas bancárias, até pornografia e pedofilia (Virtual Library, 2008. Trolley et alii, 2006. Durosimni, 2008. Gray, 2003. Harding, 2008). Tudo é preocupante, mas talvez mais ainda é a pedofilia, por ter como vítimas as crianças, acrescentando-se a isso igualmente a manipulação delas para fins do consumismo (advertising especializado). Em ambiente de marcado liberal, ética não faz parte, como diria Bakan (2004). Ao contrário da sensação de liberdade que a criança facilmente experimenta lidando com computador e internet, tais ambientes escondem cenários consideráveis de controle, apropriação privada, manipulação de conteúdos, sem falar em plágio, que se tornou preocupação grandiloquente dos professores (Galloway, 2004. Boyle, 1997. Mehgan, 2006. Wesh, 2009. Gray, 2003. Reid, 1999). Olhando por esta ótica, computador e internet podem ser uma brincadeira temerária, deixando os pais angustiados. A criança corre inúmeros riscos, exigindo a vigilância paterna. É difícil discutir os contornos desta vigilância, facilmente empurrada para o autoritarismo. Diria que é importante buscar um meio termo. Não cabe apenas proibir, porque seria incentivo a mais; o filho pode não ver internet em casa, mas o fará, logo que puder, em outro lugar e com muito maior picardia. Não cabe apenas permitir, porque muitas vezes o socorro chegará tarde. Seria conveniente estabelecer ambiente de diálogo franco, embora os pais saibam que os filhos são arredios nessas coisas, porque preferem discutir isso entre pares.

II.   TRAÇOS MAIS FACEIROS

Não me cabe resolver tamanha controvérsia (Video Game Controversy, 2010), que imagino insolúvel. Mas é claro que computador e internet possuem outras faces. Em parte fez um “up grading” virtual nos contos de fadas, imprimindo-lhes ainda mais fantasia, movimento, animação, interatividade. Tornou-se, literalmente, “cultura popular”, porque é o meio mais marcante de produções culturais. A par disso, podem representar grandes oportunidades de aprender, sem falar que fazem parte das habilidades do século XXI: novas tecnologias não são apenas meio; são também alfabetização, parte integrante dos processos de produção de conhecimento e informação. Embora atrelados ao mercado, que faz deles objeto de consumo sem peias, não podem ser vistos apenas como vilões.
Primeiro, falamos agora de “novas alfabetizações”, indicando que a iniciação à vida inclui muitas outras habilidades que não sejam apenas ler, escrever e contar (Attwell, 2007). A nova geração (Carlson, 2005) está empurrando o sistema educacional para além de algumas fronteiras enrijecidas como a da aula instrucionista (Foreman, 2003), neste mundo “feito de conhecimento” (Stehr, 2002). Não querem mais que a escola seja constituída de um sistema disciplinar centrado numa figura intocável e indiscutível (Schneider, 2007. Tapscott, 2009), pela razão simples de que conhecimento não é dinâmica intocável e indiscutível (Feris & Wilder, 2006. Fisher et alii, 2006): é feita por todos e nunca se acaba; não admite mais o argumento de autoridade, agora se funda – sempre provisoriamente – na autoridade do argumento, como ocorre na wikipedia (Mader, 2006. Notari, 2006. Livingstone & Bober, 2005. Education uses of Second Life, 2008. Exploring wikis online, 2008).
Segundo, abrem-se oportunidades não formais, complementares e rivais, introduzindo de maneira bem mais concreta a teoria e a prática da “aprendizagem permanente”. Em grande parte, tudo começa com as “novas alfabetizações” (Coiro et alii, 2008), feitas fora do ambiente escolar, e que continuam pela vida afora, colocando-nos o desafio de atualização infinda (Hargadon, 2008; 2008a). Em parte rivalizam com a escola, em especial quando esta se transforma em trincheira do atraso, em parte a complementam, porque nenhum dos dois ambientes (formais e não formais) podem solicitar exclusividade. No caso da rivalidade, propõe-se ter que “desaprender” a velha pedagogia (McWilliam, 2005. Shirky, 2008), enquanto no caso da complementaridade, acentuam-se expectativas similares de desenvolvimento do pensamento crítico (McSporran & Young, 2004. Carroll, 2004. Dreher, 2001. Lih, 2004). Os ambientes não formais mais decantados são os dos videogames (Prensky, 2001; 2006), porque aliam inúmeras dinâmicas consideradas cruciais para a aprendizagem profunda (motivação, participação, pesquisa, discussão online, scaffolding, interatividade, colaboração etc.).
Terceiro, fomentam-se oportunidades de autoria individual e coletiva, efetivando naturalmente a expectativa de que conhecimento não se copia, se constrói (Emigh & Herring, 2005. Philip, 2007. Scardamalia & Bereiter,  2006). Ultrapassam-se claramente os limiares da pedagogia instrucionista (transmissão copiada de conteúdos para serem copiados) e fomenta-se a noção de que entre as habilidades do século XXI está a da produção própria de conhecimento, também por ser o “charme” do século, assim como a wikipedia se tornou, em parte pelo menos, o charme desta primeira década (Baker, 2008). Seria difícil subestimar a importância desta guinada, mesmo sob a sombra sempre presente do plágio. Já não cabe mais aula sem autoria, porque é plágio. Não cabe aprendizagem sem autoria, porque formação de autoria é, em grande parte, sua alma. Muda também a definição de professor: de repassador de conteúdos, passa a mediador da aprendizagem, mantendo os alunos no centro e dizendo-se também aprendiz (Motschnig-Pitrik, & Jolzinger, 2002. Rose & Meyer, 2002. Teachers 2.0, 2008. Veen, 2008. Oblinger & Oblinger, 2005). Ao mesmo tempo, o professor precisa estar up to date (atualizado) em termos tecnológicos, para estar à altura da nova geração (Jones & Johnson-Yale, 2005. Anderson, 2006).
Quarto, computador e internet em geral funcionam como motivadores decisivos, ao contrário de ambientes formais considerados chatos. Há riscos óbvios nisso, quando se preferem textos copiados, se coloca prazer acima do esforço de reconstrução de conhecimento, se cultiva amadorismo improdutivo (Coates, 2003. Crone & MacKay, 2007. Chisholm, 2006. Blum, 2009). Nunca se pode ignorar a ambiguidade das tecnologias, mas visivelmente a nova geração as aprecia, até demais. O exemplo mais pertinente, de novo, são os videogames. Jogando, os alunos podem também distrair-se, isolar-se, perder tempo, drogar-se (Clark & Scott, 2009. Veen, 2007). Entre resistências e entusiasmos, as novas tecnologias vão ocupando seu lugar (Lohnes & Kinzer, 2007. Lynch & Collins, 2001). Ainda é muito cedo para sugerir que internet auxilia a desenvolver o cérebro mais que livros (é uma tirada fora de lugar) (Modine, 2008), mas pode-se afirmar que internet vai fazer parte da aprendizagem, naturalmente (Rubenstein, 2003). Este rosário poderia continuar indefinidamente. A intenção é apenas mostrar também o outro lado.

PARA CONCLUIR

A escola e seus professores não podem comparecer neste cenário como mera resistência, tanto porque é inútil (computador e internet vieram para ficar), quanto porque se perde oportunidade decisiva. Não cabe o determinismo tecnológico, porque sociedade e tecnologia se condicionam reciprocamente. Mas é preciso perceber o andar dos tempos. Como educação insiste em afirmar que está à frente dos tempos, seria de se esperar que não se esconda em velharias, como é o atual instrucionismo vigente. Papel decisivo detém o professor: a qualidade de sua aprendizagem é condição decisiva da qualidade da aprendizagem do aluno. Ele precisa, mas que de críticas, de oportunidade tecnológica.

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[1] Existe uma empresa chamada “Spirit Technologies”, dedicada a produzir programas virtuais de apoio empresarial (inovação, sobretudo): http://www.spirittechnologies.net/home.php
[2] Negroponte é conhecido por ter sido figura de proa da proposta educacional “UCA” (um computador por aluno) (Zittrain, 2008). Lévy cultiva um tom mais filosófico e é muito lido por acenar com cenários em geral muito positivos para as tecnologias virtuais (1998; 1999).

Um comentário:

Fabi disse...

Cabe ao professor ensinar o educando de qual é a forma correta para utilizar os meios de comunicação e computador. Tudo pode ser usado para o bem, basta ensinar.