6 de jan. de 2009

Festa nos céus

Nosso colunista inaugura o ano internacional da astronomia celebrando os pais da ciência do cosmos

Marcelo Gleiser

"Neste 2009, vamos celebrar os homens e mulheres que, nos últimos 400 anos, trouxeram tanto do Cosmos até nós"

Em 2009, os céus estão em festa. O mundo comemora o ano internacional da astronomia, pagando um tributo mais do que merecido à ciência que nos revela os segredos do Universo e das nossas origens. Serão centenas de conferências, palestras, feiras de ciência e exposições celebrando 400 anos de astronomia moderna. Durante o ano, dedicarei este espaço para contar um pouco dessa história fascinante: os grandes cientistas, seus dramas e descobertas; a tecnologia que começou com uma simples luneta e que hoje explora desde geleiras marcianas até os confins do Universo; questões ainda não respondidas, como a origem do Cosmos e a possibilidade de vida extraterrestre. Toda uma gama de tópicos derivados da ciência dos céus.

Começando pelo princípio, devo explicar a escolha de 2009 como o ano da astronomia. Em 1609, ou seja, 400 anos atrás, dois eventos marcaram o início da astronomia moderna. O mais famoso deve-se a Galileu Galilei, o italiano considerado por muitos o "pai" da ciência moderna. Em 1609, ele recebeu de presente de um amigo um objeto inventado pelo oculista holandês Johannes Lippershey em outubro de 1608, um "tubo óptico de magnificação". Extremamente habilidoso no laboratório, Galileu logo construiu o seu próprio telescópio, com lentes mais potentes do que as do holandês. E, num momento inspirado, apontou o instrumento para o céu noturno. Muito provavelmente, outras pessoas já haviam feito isso. Mas nenhuma o fez com a inteligência, a astúcia e a eficácia de Galileu. O que o italiano viu mudou profundamente a nossa concepção do Cosmos. E a relação entre a religião e a ciência.

No mesmo ano, nos arredores de Praga, o alemão Johannes Kepler publicou o livro "Astronomia Nova". Após oito anos de muita ansiedade e de montanhas de cálculos, ele conseguiu provar o que ninguém, em 3 mil anos de observações, jamais havia suspeitado: as órbitas planetárias são elípticas, e não circulares. No livro, Kepler demonstra isso apenas para Marte. Mas já foi o suficiente. O círculo, figura mais perfeita, deixou de ocupar o centro do palco. Kepler foi além. Na mesma obra, especulou que uma força emanando do Sol é a responsável pelas órbitas planetárias. É o embrião da teoria universal da gravidade, que seria desenvolvida por Newton décadas depois. Não é à toa que Kepler batizou o seu livro de "Astronomia Nova". Ele sabia que os céus jamais seriam os mesmos.

Toda essa história começou um pouco mais cedo, em 1543, quando o polonês Nicolau Copérnico publicou o livro "Sobre a Revolução das Orbes Celestes". Ele propõe, num ato de enorme coragem intelectual, que o Sol ocupa a posição central do Cosmos. Até então, a astronomia era dominada por ideias aristotélicas, desenvolvidas em torno de 300 a.C. Segundo Aristóteles, a Terra, imóvel, era o centro do Cosmos. A Lua, o Sol, os planetas (até Saturno, já que Urano e Netuno não são visíveis a olho nu) e as estrelas giravam à sua volta em órbitas circulares. Pensava-se que os objetos celestes eram feitos de uma substância encontrada apenas nos céus, batizada de quintessência ou éter. Na Terra, tudo era composto por terra, água, ar e fogo. Aristóteles dividia a realidade em duas partes: da Lua para baixo, os elementos podiam se combinar, permitindo transformações materiais. A Lua e os demais corpos celestes eram perfeitos e imutáveis. Os céus eram eternos.

Copérnico virou tudo de cabeça para baixo. Ao pôr o Sol no centro, transformou a Terra num planeta como outro qualquer. Teólogos não gostaram nada disso, já que tanto católicos quanto luteranos achavam que a adoração do Sol era um ato pagão. Se Deus criou o Cosmos, certamente teria optado por um arranjo onde nós, Sua criação, ocupássemos uma posição especial. Copérnico não ligou. Seu esquema ainda ordenava os planetas de acordo com o tempo que demoravam para completar uma órbita: de Mercúrio, com 3 meses, a Saturno, com 29 anos. Muitos acham que a Igreja censurou Copérnico. Isso não foi verdade até bem mais tarde, em 1616. Tanto assim que Copérnico dedicou o seu livro ao papa Paulo III. A complicação com a Igreja se deve a Galileu e à sua insistência em tentar convencer os teólogos cristãos de que interpretavam a Bíblia erroneamente - ao menos no que diz respeito à posição da Terra no Cosmos.

A obra de Copérnico, mesmo que lida por algumas das mentes mais influentes do século 16, só foi surtir efeito 70 anos mais tarde, nas mãos de Galileu e Kepler. São eles os verdadeiros herois da revolução copernicana, os que iniciaram de fato a profunda transformação do nosso conhecimento. Se hoje sabemos que somos feitos de matéria das estrelas, que nosso planeta foi formado há 4,5 bilhões de anos e que vivemos em um Universo em expansão, devemos agradecer aos dois. Apenas aqueles que acreditam na força das idéias têm o poder de transformar o mundo. Neste 2009, vamos celebrar os homens e mulheres que, nos últimos 400 anos, trouxeram tanto do Cosmos até nós.


Marcelo Gleiser é astrofísico, professor do Dartmouth College, nos Estados Unidos, e autor de cinco livros sobre ciência e conhecimento

Fonte: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu/0,,EDG85746-8076-210,00-FESTA+NOS+CEUS.html

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