20 de set. de 2008

Três trabalhos atraentes

Escrito por Gabriel Perissé
28-Abr-2008


Ler é trabalho. Eleger um livro, livrar-se do tempo para ter tempo de percorrer suas linhas, penetrar nas entrelinhas. Ler é trabalho trabalhoso. Comer a carne da leitura, sugar-lhe o sangue, roer-lhe o osso. Suportar o que há de insosso até chegar ao poço de água viva. Mais: saborear o insosso. Sentir no insosso o gosto que poderia ter.

Ler dá trabalho. Guardar da leitura a palavra exata, a frase contundente, a imagem certeira, a metáfora nova, a idéia paradoxal, o personagem mais vivo que os próprios vivos. Ler é trabalhar sem salário, sem recompensa material. Ler é trabalho puro, trabalho duro, trabalho divino.

Ler é também trabalho sujo. Ler é lamber os séculos, digerir tudo o que há em outras mentes. Leitura suja. Leitura suja de vida. E por isso é trabalho limpo. Trabalho decente, atraente.

Pensar é trabalho. Raciocinar é pouco, apenas racionar idéias, contar os passos, evitar falácias, economizar processos. Pensar mesmo, que cansa, é transbordamento, perda do tempo que não temos. Pensar é imaginar e relembrar, transgredir e transcender.

Pensar dá trabalho. É virar do avesso o que já estava certo. Pensar é misturar. Bom senso com não-senso, senso prático com senso moral, senso comum com senso estético.

Pensar é trabalhão. Emagrece a alma. É sempre hora extra, hora extensa, hora extrema. Pensar é pensar nas horas mortas e nas horas vivas, nas horas vagas e perdidas, em cima da hora, pela hora da morte.

Escrever é outro trabalho e tanto! Escrever é ser escravo das letras. Trabalhar de sol a sol, de lua a lua, de segunda a segunda, de hora em hora, de chaga em chaga, de ano em ano, tudo e nada, com leitor ou sem, com editora ou sem, com dinheiro ou sem.

Escrever dá trabalho. Dá medo, dá dor, dá dó. Catar palavras nas areias, correr atrás de algumas, que fogem. Ou fugir das que nos perseguem, repetidas, redundantes, replicantes.

Escrever, trabalho braçal, trabalho de cão, trabalho de Hércules, trabalho de Sísifo, trabalho de parto que nos parte ao meio, trabalho forçado que liberta.

Ler, pensar e escrever. Três trabalhos que atraem, subtraem, maltratam e enriquecem. Trabalhos ocultos, solitários. Trabalhos que aumentam a fome de trabalhar. Trabalhos impunes. Trabalhos sem perdão, sem a devida remuneração. Trabalhos que não têm preço. Que não têm fim. Que não têm jeito.

Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor

Web Site: http://www.perisse.com.br/

Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/content/view/1736/53/


Obs.: Precisa dizer mais alguma coisa? Perfeito.

2 comentários:

Unknown disse...

excelente postagem, parabéns.

Unknown disse...

Professor, com certeza vc é doutor em leitura e escrita.