Certo dia, no início dos anos 90, o programa matinal da TV Globo dirigido ao público infantil mostrava crianças disputando um jogo qualquer, mas quando a brincadeira chegou ao fim aconteceu algo chocante: o garoto que teve o pior desempenho recebeu, ou melhor, foi castigado com um livro.
O episódio dispensa comentários quanto ao seu significado: no Brasil, ler (mas também escrever) tem qualquer coisa de insensatez heróica, dado o ambiente secularmente pouco receptivo, para não dizer refratário, à cultura letrada. Sabemos quais são as causas genéricas desse tratamento: o obscurantismo português, o elevado preço dos livros, o ensino sem qualidade, os professores mal pagos, as crianças que chegam à escola já impregnadas pela ideologia dos meios massivos, a vassalagem dos autores, sem nenhuma capacidade de barganha, aos editores – a lista não é pequena. Mas se quisermos obter um retrato menos impressionista da situação, seria oportuno refletirmos sobre alguns números preocupantes. No Diagnóstico do Setor Livreiro no Brasil, elaborado em 2007 pela Associação Nacional de Livrarias, podemos pinçar ao acaso as seguintes informações:
- Existem no Brasil 2600 livrarias; segundo a UNESCO, países com a nossa população deveriam ter no mínimo 17000.
- O estado de Rondônia, com 620.000 habitantes, dispõe apenas de 4 livrarias.
- Para universalizar-se entre nós, o livro deveria custar um terço do preço atual por exemplar.
- Somente 26% dos brasileiros alfabetizados conseguem ler e entender um texto longo (de 20 páginas, digamos, sendo generosos).
Não são, como vimos, desconhecidas as variáveis a determinar esse quadro, porém a mais influente delas consiste, acreditamos, numa falha histórica: o Brasil transitou da cultura oral para a cultura eletrônica e visual sem ter passado pela escrita, ou seja, pelo livro. Afastando-se da trajetória seguida pelas nações bem-sucedidas, que investiram pesado em educação para atender com mão-de-obra qualificada às demandas de seus parques produtivos, o país não viu a cultura letrada sedimentar-se em extensão ou em profundidade em suas populações, e a hostilidade a ela continua viva. Pesquisa recente no Rio e em São Paulo mostrou que 15% dos universitários das nossas duas maiores cidades nunca leram um livro. Pela mesma época, um figurante do reality show BBB-8 declarou, com orgulho e o apoio dos demais participantes: “Graças a Deus, nunca fui desses de ler livro”. Por que, invocando a conivência divina, ele desdenha os livros? Sem medo de errar, é porque nosso letramento, afetado agora por concorrentes ultrapoderosos como o computador, a internet, os games, a tv a cabo, é deficiente, precário, pobre em sedução e em promessas como em recompensas, parecendo ainda congratular-se com essa condição.
Esta simples coleta de dados mais ou menos aleatória aponta para uma conclusão desanimadora: por aqui, o letramento não leva à cultura letrada, contradição que beira o surrealismo; na verdade ele gera milhões de analfabetos funcionais, gente com um desempenho entre o severamente limitado e o sofrível no uso da língua portuguesa, falando ou escrevendo. Por quais razões, especificamente?
Antes de encaminhar uma resposta, no entanto, seria conveniente perguntarmos: o que é ler?
Ler é produzir sentido a partir de signos gráficos. É um processo custoso, intenso e violento de interferência na sensibilidade infantil ou adulta, e envolve aspectos já bem estudados por pesquisadores como Vincent Jouve, para quem a leitura abrange:
- A dimensão neurofisiológica – isto é, a percepção visual, a memorização que viabilizam a internalização da leitura.
- A dimensão cognitiva – o conjunto de movimentos lógicos e psicológicos que efetivam a competência da leitura, como juntar letras, sílabas, palavras, frases, parágrafos, capítulos até se perfazer, com o respectivo sentido, a totalidade do texto. Ler é uma atividade intelectual, inferencial que interpreta e simultaneamente completa o texto.
- A dimensão afetiva – A sedução na mensagem publicitária ou a emoção num poema ou numa cena romanesca envolvem valores, identificações e reações afetivas que podemos qualificar como imanentes ao texto, para serem ativadas pela leitura.
- A dimensão argumentativa – Quando lemos, estamos sempre discutindo, concordando ou discordando do texto, confirmando ou negando a visão oferecida pelo autor.
- A dimensão simbólica – A leitura é um jogo cultural com as idéias e valores de uma época, com suas convenções literárias, com a grande Biblioteca que compreende as literaturas – jogo chamado intertextualidade: toda obra literária é lida numa trama de relações comparativas com outras obras.
Na mesma linha de carências, as instituições educacionais jamais apresentaram com clareza à sociedade, a não ser, em parte, nas últimas décadas, graças às exigências cobradas pela economia dependente do conhecimento, as vantagens e promessas da formação escolar ou o seu significado para além da pedagogia. Raramente é passado para a grande massa que, a certa altura do processo educacional, o indivíduo letrado deixa de ser fruto apenas do aprendizado para se tornar a realização de um desejo, de uma conquista interminável no âmbito da arte e do conhecimento. Leitores verdadeiros lerão sempre, porque o livro integra suas vidas como um projeto.
Com isso, a abertura para o imaginário, voltada para a evolução e transformação do sujeito pela experimentação literária, propriedade da leitura como da escrita, acaba obstruída. O resultado é a perda, para milhões, dos benefícios ofertados pelo livro, privando-os da vivência contida nesta bela frase de Kafka: “Todo livro deveria ser como um machado a fender os mares congelados dentro de nós.”
OS OBSTÁCULOS À CULTURA LETRADA
Natural, espontânea, a língua falada perpassa toda a extensão do social e está, a rigor, entre as suas condições de existência. No processo civilizatório, sobretudo no Ocidente, a fala e a cultura oral foram amplamente repassadas de cultura letrada, operação cujo instrumento tem sido a instituição escolar. No caso brasileiro, os problemas com a implantação da escrita não encontraram nenhum outro aliado tão vigoroso quanto a nossa cultura oral.
Rica, expressiva, inventiva – traços salientes nas criações da língua tal qual é falada pelas camadas iletradas ou semiletradas – essa cultura responde pela vivacidade do nosso cotidiano, sendo apropriada pelos meios massivos para que disponham de um repertório de acesso a amplas faixas da população. Ela conserva e reproduz as mentalidades não escritas e tem numa fala cheia de cores, de afetos o veículo insubstituível para seus provérbios, jogos verbais, piadas, apelidos, alusões ao seu elenco mítico e folclórico. Em resumo, os falares populares brasileiros prevalecem na comunicação oral, inserem-se com vigor no texto escrito, no literário inclusive, mas são pobremente repassados de letramento, o que em última análise sacramenta o império da oralidade entre nós.
Esse predomínio tem uma lógica a ser compreendida. As fontes para isso abrangem obras tão variadas quanto Oralidade e cultura escrita, de Walter Ong, ou La raison graphique, de Jack Goody, mas nenhuma é tão inovadora em amplitude e sagacidade quanto a colagem de textos que compõem A galáxia de Gutenberg, de Marshall McLuhan. Ali desvenda-se o impacto da cultura letrada sobre as sociedades orais, ou seja, em termos mcluhanianos, da troca do ouvido pelo olho – mudança, em sua radicalidade, conduzida não sem um forte grau de violência cultural, porque rompe o equilíbrio entre os sentidos e abala também, pelo primado concedido à visão, as solidariedades coletivas forjadas pela voz.
O custo é particularmente alto no aprendizado. Aprender a falar é fácil e instintivo; aprender a ler e a escrever envolve processos demasiado artificiais, implicando desde o adestramento muscular até grandes quantidades de memória e aplicação, sem esquecer o quanto a fala é em certa medida atividade realizada com esforço reduzido, enquanto a escrita se mostra mais exigente na elaboração dos enunciados. Um parâmetro para se avaliar essa diferença pode ser extraído, indiretamente, da informação de que, entre as 3000 línguas conhecidas, apenas 76 produziram literaturas escritas; e se tomarmos o inglês como exemplo, constatamos que sua expressão oral inclui apenas alguns poucos milhares de palavras, ao passo que seu léxico para o texto escrito chega a l,5 milhão de vocábulos.
A reestruturação cultural e psicológica promovida pela introdução da escrita nas sociedades orais pode ser melhor visualizada no quadro abaixo, onde estão listados as características dominantes nas duas orientações culturais:
Cultura Oral | Cultura Letrada |
Fala/ouvido | Escrita/olho |
Espaço aberto, inclusivo | Espaço perspectivo, exclusivo |
Exercício informal da língua | Exercício formal, codificado da língua |
Espontânea e improvisada | Premeditada e elaborada |
Organização distensa do pensamento | Organização racional do pensamento |
Intuitiva, convivial | Reflexiva, analítica |
Situação concreta, vivida | Isolante, abstração conceitual |
A palavra falada é evento, valor, ação | A palavra escrita é coisa, informação |
Relacional, presencial, personalista | Unilateral, virtual, institucional |
Descontinua e frouxa | Sequencial e encadeada |
O contexto colabora para o sentido | O sentido se dá no texto |
Permeia a trama do cotidiano | Retira o indivíduo do cotidiano |
Mobiliza o rosto, os membros, a voz | Inibe o corpo, exige concentração |
Projeta o indivíduo no mundo | Promove a introvisão, a introspecção |
Ethos e memória coletivos | Ethos individualista, destribalizante |
Comparando-se as duas colunas, não é preciso reflexão profunda para se constatar o quanto os traços disseminadas pela cultura oral formatam o cotidiano e o comportamento da maioria dos brasileiros, efeito associado igualmente à circunstância de que nossos falares manifestam, como dissemos, baixíssima taxa de reelaboração pelo letramento. Somos barulhentos e gregários. Nossa intuição e sentimentalismo prevalecem sobre a racionalidade, assim como a informalidade dispensa protocolos. Temos uma refinada cultura do corpo, mas somos indisciplinados, improvisadores, o que empresta excelência à nossa cultura de massa. Valorizamos o contexto, a experiência, o dia-a-dia em oposição à informação e ao conhecimento abstratos. Excetuando-se o jogo do bicho, aqui não vale o escrito: cultuamos o absurdo “Ilegal, e daí?” e nos aeroportos lemos os horários nos painéis, mas o personalismo nos faz procurar alguém no balcão para confirmá-los. Em resumo, a inércia representada pela oralidade cerceia o interesse pela cultura letrada e isso contribui enormemente, entre outras coisas, para que tenhamos uma extraordinária música popular mas não uma grande literatura.
O CAMINHO DAS PEDRAS: MAIS E MELHORES TEXTOS
O letramento precário reforça a cultura oral, tornando-a mais densa e duradoura, porque para muita gente a internalização da escrita e de seus valores é custosa, quando não traumática. É preciso assinalar ainda a ocorrência de um fenômeno na transição do ouvido para o olho: a pregnância da oralidade. Na Europa, durante a Idade Média, dizia-se que escrever era “ditar para si”. A leitura em voz alta, ali, prolongou-se até o século 19, isto é, por seis séculos após a invenção da imprensa. Durante muito tempo, o texto “bem escrito” foi na verdade uma peça oratória, aquela boa para ser lida com eloquência diante de platéias. Em lugares os mais variados, essa impregnação se transportou para dentro da própria produção literária. Virginia Woolf lia em voz alta, no banheiro, os próprios textos; a vocalização, dizia, permitia-lhe explorar melhor a musicalidade de suas frases. Os poemas do libanês Khalil Gibran, o preferido de misses e moçoilas nos anos 1960 e 1970, eram em sua maioria compilações de fórmulas verbais e clichês amealhados no dia-a-dia árabe. Numa clave mais erudita ou criativa, era o que fazia também James Joyce ao apoiar-se nos jogos verbais bastante comuns na fala dos irlandeses, para compor os neologismos caros ao Ulisses. Não menos famosa, por fim, tornou-se a caderneta em que Guimarães Rosa registrava com rigor o idioleto preservado pelos vaqueiros das Gerais.
A pregnância da oralidade em seu embate com a cultura letrada engendrou o pequeno drama que está na origem deste texto. Jantando num self-service, eu pedira ao garçom, Manuel, conforme a plaqueta em sua lapela, uma taça de vinho. Era sua obrigação anotar a expressão “taça de Miolo” na comanda. Manuel sabia ler porque apontou a caneta para a rubrica certa no papel, mas ensaiou daqui, dali, mudou de posição junto à mesa, rabiscou qualquer coisa ilegível, tentou remendar, riscou o rabisco, limpou a testa com o dorso da mão, de olhos baixos para esconder a vergonha por não saber escrever direito, depois decidiu consultar outro garçom. A cena tinha um único sentido: a humilhação imposta pela escrita às pessoas que não a dominam inteiramente. Naquele momento, constrangido com o sofrimento que eu havia, sem querer, causado ao garçom, ocorreu-me seguinte idéia: Manuel, e milhões como ele com gradientes diversos em habilidade na escrita, jamais vão se interessar pela leitura justamente porque não sabem escrever, e porque suas vidas se passam, quase no seu todo, no mundo oral. Escrever é para eles uma eventualidade vexatória, sob grande tensão interna, e só. A leitura não lhes é menos estéril ou intimidadora. Eles pertencem às legiões dos que ficaram bloqueados na dimensão cognitiva do nosso letramento deficitário, sem acesso aos demais níveis que aprofundam o compromisso com a escrita, lendo mal, escrevendo pior ainda; e porque escrevem com dificuldade, eles simplesmente rejeitam a leitura, as vias abertas pelo livro, a esperança no universo da cultura letrada.
Não seria ocioso repisar o quanto os alunos escrevem pouco nas escolas brasileiras e só raros entre eles apreciam a redação. Esta é sem duvida uma razão palpável para as pequenas dimensões do nosso parque editorial e do comércio livreiro, apesar dos progressos nas duas últimas décadas, realidade que se complica comicamente, pode-se dizer, pelo seu potencial na direção contrária: a revista Coquetel de palavras cruzadas tira dois milhões de exemplares por mês!
Somente a continuidade e a intensificação do letramento, dando igual ênfase à leitura e à escrita, levariam os grandes contingentes da nossa população à margem do livro a desfrutar o imenso tesouro de formação e informação disponível na tradição humanística. Aí sim iríamos vender mais livros. Nos países com alta escolaridade e grande densidade literária, isto é, onde ainda se edita e se lê muito, como França e Inglaterra, era comum nos séculos passados as pessoas manterem diários não para serem publicados, mas para o cultivo da atividade intelectual e registro da vida cotidiana. Nos anos 1970 e 1980, os editores franceses reclamavam do quanto se tornara problemática a seleção de originais para publicação, porque a maioria dos textos, fossem os autores talentosos ou não, eram no mínimo escritos com qualidade. Quer dizer, escrever bem faz bons e muitos leitores.
Por mais contra-intuitivo que pareça face à crença em que a leitura leva à escrita, julgamos que a prevenção e eliminação do analfabetismo funcional passam pela especialíssima atenção a ser dada ao redigir. A venda de livros só deve aumentar significativamente no Brasil quando tivermos largas camadas da população sabendo escrever ou escrevendo melhor, porque então os problemas com a caneta sobre o papel perderão a força dissuasória pela qual se abandonam a leitura e seus efeitos incomparáveis. Essa nova condição não é uma aquisição isolada. Ela representa um complexo de habilidades e valores sociais que não só acentuam como gratificam as consequências do saber escrever, começando pela elevação do indivíduo a um novo patamar comunicacional e social.
Para sermos práticos, entre as razões pelas quais a escolarização, em todos os níveis, deveria investir pesado na escrita, poderíamos listar:
- Escrever também é ler, mas a recíproca não é verdadeira.
- Escrever melhora a capacidade de leitura e compreensão da articulação textual.
- Melhora a capacidade de raciocínio e organização do pensamento.
- Amplia o conhecimento da língua e da importância da comunicação escrita.
- Amplia a apreciação dos valores expressivos e estéticos dos meios de linguagem.
- Amplia o poder de comunicação e de interação social.
- Aprimora a sensibilidade individual pela valorização da criatividade verbal.
- Aumenta a segurança e o desempenho verbais, o que normalmente redunda em segurança pessoal e melhor performance social.
- Favorece o desenvolvimento profissional do indivíduo.
- Abre oportunidades profissionais e sociais.
- Desenvolve a autonomia intelectual e pessoal, acarretando menos dependência e evitando a humilhação.
- Modifica o status social e cultural do indivíduo, que sai da posição de inferioridade.
- Leva à leitura como forma de consolidar e incrementar essas conquistas.
Jair Ferreira dos Santos - Ficcionista, poeta e ensaísta
BIBLIOGRAFIA
ABRAMO, Bia. Pérolas, porcos e patetas, In: Folha de S. Paulo, 03.02.08, S. Paulo, p.E6.
GOODY, Jack. La raison graphique, Paris, Ed. de Minuit, 1977.
JOUVE, Vincent. La lecture. Paris, Hachette, 1993.
MCLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1977.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação, São Paulo, Ed. Cultrix, 1969.
MENEZES, Maiá. Levantamento mostra que 15% dos universitários nunca leram um livro. In: O Globo (04.07.2007), Rio de Janeiro.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas, Ed. Papirus, 1998.
TAVARES, Vitor. Em extinção, in: O Globo, 15.07.07, Rio de Janeiro.
Fonte: http://www.estacaodasletras.com.br/arquivos/artigos/lermais.html
3 comentários:
Muito interessante esta postagem,serve para elucida muita coisa sobre leitura e escrita.Sou professora de Português e cada ano mais dificuldades tenho para fazer com que os alunos leiam.
Abraços
Seguramente.
Eu estou numa lanhouse, com um pouco de pressa. Prometo voltar para ler com menos correria.
FOI DESSE JEITO QUE EU OUVI DIZER... deseja uma boa noite para você.
Saudações Educacionais !
A tecnologia de hoje nos distancia muito da vida real e nos distancia também da leitura, que é muito preciosa e também é prazerosa. Estar 24h em frente à telinha do computador ou da televisão é legal, mas nos faz um mal danado, que muitas vezes, nós não enxergamos.
Beijitos da sua filhota sapeca
Aninha
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